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Os truques da Sotheby's para vender 'O Grito'

A figura no centro da pintura "O Grito", de Edvard Munch, já foi chamada de muitas coisas: feto, verme, girino, caveira. Já foi apelidada de "retrato da alma" e "rosto que lançou 1.000 terapeutas".

Agora, pela primeira vez na história, ela se tornou algo mais: a celebridade de um leilão.

"O Grito" será leiloado na Sotheby's nesta quarta-feira em Nova York. Especialistas da Sotheby's acreditam que o preço deve chegar a US$ 80 milhões, a cifra de pré-venda mais alta que a casa de leilões já estimou.

A aparição andrógina que aperta suas faces em agonia perto de um fiorde de Oslo, pintada pelo artista norueguês em 1895, é um troféu inusitado e com poucos precedentes, famoso tanto pelas referências e paródias na cultura pop quanto por suas virtudes artísticas. Das quatro versões de "O Grito" que Munch pintou, esta é a única que não está num museu de Oslo e a primeira a ser leiloada. A Sotheby's está apostando alto com a pintura: ela pode receber os louros de leiloar um dos quadros mais caros da história, ou dar um vexame se a expectativa se provar alta demais.

Numa decisão rara, a Sotheby's enviou o quadro para casas particulares na Ásia, na América do Norte e na Europa para que importantes clientes pudessem verificar se a imagem assustadora destoava do resto de suas coleções de arte. O quadro foi retirado da moldura para certos interessados de peso, que queriam encarar o ícone face a face. A pintura até viajou há pouco tempo para Hong Kong, onde passou 48 horas para que um grande colecionador pudesse inspecionar a obra pessoalmente, numa sala reservada nos escritórios da Sotheby's.

Entre os possíveis compradores estão executivos europeus, ricaços asiáticos e xeiques do Oriente Médio. Entre os nomes mencionados mais frequentemente está o da família real do Catar, que está construindo um império de museus e, segundo relatos, teria há pouco tempo comprado "Os Jogadores de Cartas", de Paul Cézanne, por mais de US$ 250 milhões. Simon Shaw, diretor do departamento de arte moderna e impressionista da Sotheby's em Nova York, notou a fascinação do Japão com o quadro, que tem um sentido especial para o país, possivelmente porque Munch foi influenciado pelas gravuras japonesas.

O especialista da Sotheby's Philip Hook calcula que existam cerca de dez colecionadores capazes de comprar o quadro. Sua teoria pessoal é que um colecionador geralmente não gasta mais de 1% do seu patrimônio numa só obra de arte. Isso limita os interessados em "O Grito" às pessoas que têm US$ 8 bilhões ou mais.

Os rumores sobre possíveis compradores incluíram colecionadores internacionais que já conseguiram conquistar obras-primas antes, como a bilionária brasileira Lily Safra, que mora em Genebra e pagou US$ 104,3 milhões pela escultura "O Homem Caminhando I", de Alberto Giacometti, ou o executivo americano dos cosméticos Ronald Lauder, que desembolsou US$ 135 milhões numa compra particular do "Retrato de Adele Bloch-Bauer I", de Gustav Klimt, para seu museu de Nova York. Em vez de numerosos aficionados de Munch, pessoas do mundo da arte acham que uma obra cobiçada como "O Grito" deveria atrair mais o interesse de colecionadores com gostos diversos para quadros famosos, lista que inclui o industrial russo Roman Abramovich e o herdeiro grego do transporte marítimo Philip Niarchos. Representantes desses colecionadores não quiseram comentar.

Este mês, mais de 7.500 pessoas puderam ver o quadro durante cinco dias na Sotheby's de Londres. A obra foi protegida por um vidro, a mais de dois metros de um cordão de isolamento vigiado por seguranças.

Grandes clientes viram o quadro numa sala privativa da Sotheby's em Nova York, sentados em cadeiras de espaldar alto a pouca distância da obra, numa sala trancada. "Um dos maiores colecionadores do mundo disse: 'Eu poderia vender todos os meus quadros, pôr este na minha parede, pôr minha poltrona aqui com uma xícara de café e ficar olhando para ele o resto da minha vida, e ser feliz'", disse Shaw.

A casa de leilões contratou uma firma de design para projetar a iluminação da pintura em Nova York, cobrindo as claraboias e janelas para permitir que a pintura brilhasse como se tivesse uma luz interior.

O negociante de arte de Mônaco David Nahmad disse que pode fazer uma oferta por "O Grito" se os lances ficarem em torno de US$ 80 milhões, mas não se saltarem acima disso. É um investimento delicado, diz ele, pois o nome Munch não é tão reconhecível quanto outros e o valor de revenda não é garantido: "Se tivesse que escolher entre comprar um Picasso ou um Munch, preferiria comprar um Picasso", diz ele. "Todo mundo sabe tudo sobre Picasso, Matisse, Cézanne, Monet. Se você chegar para alguém da América do Sul e dizer que tem um Munch para vender, ele vai dizer: 'Quem é esse?'."

A versão de "O Grito" que será leiloada na Sotheby's é uma mistura clara de 12 cores diferentes, com a figura esquelética no primeiro plano tendo uma narina azul e outra marrom. O terceiro de uma série criada entre 1893 e 1910, o quadro foi pintado com pastel sobre cartão. Alguns negociantes de arte consideram o pastel uma desvantagem, embora outros digam que as linhas e cores são mais elétricas do que nas versões a óleo. A pintura oferece uma atração especial: sua moldura, gravada com o poema original que Munch escreveu em 1892 e que dizem ter inspirado a obra. Nele, o pintor se descreve caminhando por um fiorde, "tremendo de ansiedade" e sentindo "um grito infinito atravessando a natureza".

Antes do leilão, a Sotheby's mandou publicar um livro de capa dura e edição limitada para os principais clientes. Ela também produziu dois vídeos para promover o leilão de "O Grito".

Munch não necessariamente se incomodaria com tamanha campanha de divulgação em massa. O artista, cujo trabalho já foi considerado tão subversivo que os pais eram alertados de que poderia dar catapora nos seus filhos, era um mestre do marketing. O norueguês, apelidado de "Bizarro" no início da carreira, foi um dos primeiros artistas a cobrar entrada para as exposições de seus quadros. Ele fez isso em 1892, depois que o kaiser fez um discurso na Alemanha contra suas pinturas. Munch não estava ganhando dinheiro com a venda das obras, mas pelo menos podia embolsar o ingresso das exposições.

Quando Munch criou a primeira versão de "O Grito", o artista alcoólatra e fumante inveterado estava num estado de desespero: acabara de fazer 30 anos, não tinha dinheiro, recuperava-se de um caso de amor desastroso e tinha pavor de sucumbir aos problemas mentais que corriam na família, diz Sue Prideaux, uma especialista em Munch. O artista colocou sua figura amebóide num local da baía de Oslo que era conhecido pelos suicídios. De lá, os passantes podiam ouvir os gritos de um matadouro e um manicômio próximos, diz Prideaux, acrescentando que a irmã de Munch, que foi diagnosticada com esquizofrenia, ficou internada naquele asilo. Uma possível interpretação errônea sobre seu trabalho pode ser sobre o grito em si: muitos historiadores da arte dizem que a personagem não está berrando, mas bloqueando o som da gritaria ao redor.

Os historiadores da arte consideram "O Grito" a reação de Munch ao impressionismo, que parecia entediá-lo — ele dizia que o movimento só mostrava pessoas lendo ou tricotando — e que abriu uma nova era de expressionismo em que os artistas tentavam dissecar suas próprias essências psicológicas. Quando ele pintou "O Grito", Munch já estava lendo os mesmo livros e participando das mesmas palestras em hospitais que Sigmundo Freud, diz Prideaux. Anos antes do primeiro "O Grito", Friedrich Nietzche havia lançado sua famosa ideia filosófica de que "Deus está morto", abrindo o caminho para as explorações modernas da alienação.

A imagem atraiu rapidamente a atenção da turma mais progressista da arte europeia. Para espremer o máximo desse entusiasmo, Munch criou litografias em preto e branco para que a imagem pudesse ser impressa em revistas europeias e vendida individualmente. Ele se recusou a explicar o quadro, alimentando ainda mais a fascinação do público.

Mais recentemente, a figura esquelética já foi reproduzida várias vezes e em vários lugares, de formas para cubos de gelo a pôsteres de campanha política.

Tamanha celebridade mundial já tornou o quadro um alvo. Os apostadores londrinos têm dado 1 chance em 20 de ele ser roubado antes do leilão. Duas outras versões de "O Grito" já foram roubadas de museus de Oslo. Outras duas foram roubadas e recuperadas, uma na National Gallery, em Londres e outra no Museu Munch, em Oslo.

A Sotheby's está preparando há muito tempo o terreno para o leilão do quadro de Munch, tendo organizado oito dos dez maiores leilões de quadros do pintor nos últimos anos. "Temos tentado muito conscientemente e estrategicamente ampliar o prestígio dele e criar um mercado mundial", diz Shaw.

Mas, como poucos quadros de Munch já foram a leilão, os colecionadores não têm um histórico de vendas em que se amparar, o que pode prejudicar a confiança de potenciais compradores.

O colecionador de arte nova-iorquino David Nash, que por muitos anos comandou o departamento mundial de arte impressionista e moderna da Sotheby's, se diz surpreso com a estratégia da casa de leilões para "O Grito". "Parece que não há muita justificativa para uma estimativa tão alta", diz ele. "Seria melhor para eles apresentar uma estimativa mais realista e deixar o mercado determinar qual será o preço final."

Outros, porém, estão mais otimistas: a Skate's Art Market Research, que analisa o mercado mundial de arte, prevê que a pintura alcançará um valor entre US$ 92,5 milhões e US$ 123,4 milhões. Ela chegou a esse número, em parte, depois de analisar as vendas de outros quadros famosos de artistas como Paul Gauguin e Vincent van Gogh. O recorde de preço de um quadro vendido em leilão foi estabelecido em 2010, quando "Nu, Folhas Verdes e Busto", de Picasso, foi arrematado por US$ 106,5 milhões na Christie's. A atual temporada de leilões da Christie's e da Sotheby's está repleta de obras que devem ser vendidas a mais de US$ 20 milhões, um nível de estimativa que era raro até dez anos atrás.

O dono de "O Grito", Petter Olsen, um norueguês herdeiro de transporte marítimo e de imóveis, está tentando faturar alto com a venda. Ele dispensou a garantia de preço — um acordo geralmente usado na venda de obras de arte notáveis, em que a casa de leilões garante ao vendedor um valor mínimo em troca de uma comissão maior.

Olsen, que através da Sotheby's recusou-se a dar entrevista, cresceu tendo o quadro na sala de estar da casa da sua infância. Ela pertencia a seu pai, Thomas Olsen, que comprava quadros de Munch e foi seu vizinho na pequena cidade norueguesa de Hvisten. Durante a Segunda Guerra, Thomas escondeu "O Grito" e dezenas de outros quadros de Munch num celeiro de feno afastado para protegê-los dos nazistas, que andavam queimando obras de arte que consideravam imorais.

O quadro passou pelas mãos de apenas três famílias desde que foi pintado. Seu primeiro dono foi um magnata alemão do café, que provavelmente mandou pintar o quadro. Olsen já disse que está vendendo a pintura para financiar um museu para a obra de Munch em Hvisten, que será inaugurado ano que vem.

O ano que vem marca os 150 anos do nascimento de Munch, ocasião que será celebrada por uma grande exposição na Noruega com a participação de vários museus. Fonte The Wall Street Journal.
Narciso Machado

NCM Business Intelligence

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